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2.1 Olho d'Água dos Constantinos


Compartilho aqui o relato das minhas primeiras viagens na coleta de fotografias para o Recordatório. Esta narrativa está organizada em partes referentes aos lugares onde parei e coletei fotografias: Olho d'Água dos Constantinos, Serrinha Bela, Mulungu e Sítio Camará. Todas essas localidades ficam no Maciço de Baturité, uma região serrana do Ceará. Em cada coleta, coloquei um título para seu fácil reconhecimento nos capítulos seguintes, onde seguirei com reflexões que aproximam estas coletas do pensamento teórico sobre fotografia.


Iniciada em 15 de outubro de 2020, a coleta respeitou os protocolos de distanciamento social determinados pela situação de pandemia de Covid-191. A região do Maciço de Baturité é conhecida por suas pequenas cidades acolhedoras e por estar numa altitude de 800 metros acima do nível do mar, tendo um clima agradável e muita vegetação natural. Naquele dia, visitei 11 casas, dentre as quais apenas uma concordou em participar do arquivo. No dia seguinte, 16 de outubro de 2020, visitei três casas e todas aceitaram participar. No dia 27 de outubro, fiz outra saída em busca de fotografias antigas na cidade de Mulungu e visitei 15 casas, das quais apenas uma aceitou participar. No dia 29, visitei três casas e todas participaram da coleta de imagens.


No dia 15 de outubro de 2020, saí de casa cedo, por volta das oito da manhã. Animada com o primeiro dia de coleta, confirmei se tinha tudo que precisava: máquina fotográfica, câmera polaroide com filme, papeis para a autorização das imagens, caneta, documento de identidade (para caso fosse necessário). Com tudo em mãos, saí imersa na curiosidade do início de todo projeto.


Eu estava na minha casa, na comunidade Riacho das Pedras, também no Maciço de Baturité, e minha ideia era sair para a coleta e retornar antes do horário do almoço. Peguei meu carro, um Fiat Uno 2011, um guerreiro, como os mecânicos o chamam, e segui na estrada que levaria à comunidade próxima chamada Olho d'Água dos Constantinos. Eu já conhecia aquela comunidade, mas sempre de passagem. Nunca havia parado naquele local.


Escolhi a primeira casa e parei, pois vi que havia uma senhora na entrada varrendo e me pareceu ser de fácil acesso. Cheguei um pouco aflita e sem saber como seria a reação daquela senhora. Quando me apresentei e perguntei pela fotografia mais antiga da casa, a senhora me respondeu prontamente que na casa dela não tinha nenhuma fotografia. Pois, ela fazia questão disso. Ela não gostava de fotografias. Fiquei em choque, mas disfarcei dizendo um “É mesmo?” Ela continuou e falou por algum tempo que a fotografia era coisa que trazia lembranças e ela não gostava do passado. Não quis questionar os seus gostos nem me aprofundar nas questões que ela levantou, pois eu estava um pouco atordoada com a sua resposta. Sem questionar mais, agradeci a atenção e saí. Voltei para o carro de certa forma surpresa com aquela resposta negativa tão contundente. Fiquei admirada ao ver alguém que não aceitava fotografias na sua casa, como se aquilo pudesse lhe trazer uma má sorte. Andei mais um pouco e parei próximo a um casal de idosos que estavam sentados na calçada. Fiz o mesmo protocolo e eles também me disseram de maneira enfática que não tinham fotografias.


Decidi me distanciar mais ainda. Entrei em meu carro e segui na estrada. Ali fiquei pensando como seria esta coleta e me senti desanimada com as primeiras recusas. Mas segui na intenção de parar o carro em alguma casa onde houvesse possibilidade de parar.


Avistei um senhor de idade na varanda de sua casa, parei o carro com certa distância, fui na direção dele e me apresentei. Ele respondeu meio sem jeito que não tinha fotografias em casa. Perguntei se havia mais pessoas naquele vilarejo e ele disse que sim. Fechei o carro e continuei a pesquisa andando a pé por aquele pequeno lugar que ainda fazia parte da localidade do Olho d'Água dos Constantinos. Havia, de fato, algumas casas na sequência do caminho, mas todas estavam fechadas. Talvez pelo horário: naquele momento, era nove horas da manhã e se havia pessoas, ainda estavam dentro de casa. Mais adiante, decidi chamar por alguém dentro de casa. Bati palmas e uma jovem senhora apareceu. Muito sorridente, quis saber do que se tratava aquela visita inesperada. Quando me apresentei, ela me convidou para entrar e me puxou uma cadeira na sua varanda. Começamos a conversar como velhas conhecidas. Houve uma empatia imediata. Ela não estranhou minha procura, mas disse que havia se mudado para aquela casa havia pouco tempo e que não tinha fotografias ali. Mas me aconselhou ir à Rua da Palha, outro vilarejo seguindo a estrada mais adiante. Disse que ali tinha muita gente idosa e que com certeza encontraria o que eu queria. Também me assegurou que somente com pessoas mais velhas eu poderia encontrar estas fotografias antigas. Fiz o que ela me aconselhou: peguei o carro e segui em direção à Rua da Palha.


Chegando lá, estacionei o carro e fui de casa em casa a pé. Na primeira casa, uma jovem me atendeu, mas disse que não poderia participar, pois era apenas a cuidadora da casa e seus patrões não estavam naquele momento, mas eu poderia ir à casa seguinte que eu provavelmente poderia ser atendida. Ao chegar nessa casa, a senhora que me atendeu ficou muito desconfiada do meu pedido. Perguntou se ela teria que pagar alguma coisa. Eu vi que ela não queria participar e não quis forçar nada. Agradeci a atenção e segui para a próxima casa. Na casa seguinte, fui atendida por uma jovem que depois de ouvir minha apresentação, chamou sua tia, que era a dona da casa. Repeti minha apresentação e ela concordou em participar, ainda curiosa sem saber ao certo do que se tratava. Quando expliquei mais uma vez, ela aceitou e disse que a única fotografia que tinha em casa era aquela da sala, apontando para uma fotopintura de seus dois filhos. Quando vi a fotopintura, fiquei feliz, pois seria meu primeiro registro para o Recordatório. Afirmei que aquilo era fotografia também e pedi para registrar. Ela me autorizou entrar e fotografar. Enquanto eu estava registrando a fotopintura, ouvi uma voz feminina gritar que eu não poderia entrar na casa de ninguém sem uma ordem judicial. Aquilo me assustou e eu recuei. Uma mulher de meia idade que aparentava ser uma vizinha da casa continuou a bradar que eu não podia entrar naquela casa. Naquele momento, tirei meus documentos e quis me apresentar para essa senhora. Ela disse que não queria saber quem eu era e que eu devia sair dali de dentro. Eu fiquei muito constrangida e vi que a senhora que havia me recebido estava ainda mais constrangida, sem saber o que fazer. Decidi recuar e não discutir naquele momento. Ao me retirar, fiz questão de apagar as imagens realizadas na frente da anfitriã. Agradeci a atenção e retornei para o meu carro.


Fiquei muito assustada com toda aquela confusão e por algum momento, não sabia mais se continuaria ou não. Afinal, eu havia solicitado a autorização da dona da casa e mesmo assim, não pude coletar aquela fotografia. O que me deixou mais assustada e até em dúvida de continuar ou não foi perceber que o fato de solicitar a fotografia mais antiga me colocava diretamente num local de intimidade com os possíveis colaboradores e eu não tinha aquela percepção até então.


Decidi seguir a estradinha de terra batida e continuar com minha coleta. Estava dirigindo e me tremendo ao mesmo tempo, diante de uma reação tão intempestiva. Eu estava assustada diante de tantas negativas e agora aquela situação de constrangimento. Perguntei-me mais uma vez se deveria mesmo seguir com a pesquisa. Mesmo trêmula, decidi continuar e enfrentar aquelas dificuldades com firmeza. Depois de seguir por um grande descampado, voltei a ver casas novamente, parei o carro e continuei na minha busca por registros. Parei na casa onde eu encontraria a primeira peça do Recordatório.