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2.2.2 Sentada à sombra de um cajueiro


A terceira casa seria já uma indicação de Ana Arlete. Fui em direção à casa de Dona Preta. Ana Arlete havia me dito que essa senhora tinha muitas fotografias antigas na sua casa, mas agora ela estava sob os cuidados de sua filha, e que me receberiam com certeza. Peguei meu carro e entrei na comunidade de Serrinha Bela. Segui numa pequena estrada de terra batida. No caminho, dei carona para uma senhora que estava à beira da estrada com algumas compras. Ela também me confirmou que a casa de Dona Preta seria um pouco mais abaixo, depois de duas grandes mangueiras. Ao chegar ao local indicado, vi de fato a casa de Dona Preta, bati palmas, mas ninguém apareceu. De longe, um senhor me falou que ali não havia ninguém, que a dona da casa estaria na casa de sua filha, um pouco mais distante. Não poderia seguir no carro, pois a estrada não permitia. Fui a pé até a casa de Maria Santa, filha de Dona Preta.


Ao me aproximar da casa, avistei no quintal Dona Preta com seus longos cabelos brancos. Ela estava debaixo de um cajueiro, comendo cuscuz com as mãos. Bem sentada e com seus cabelos ao vento, olhou-me com curiosidade. Sua filha veio até a janela e me cumprimentou desconfiada também. Apresentei-me e perguntei pela fotografia mais antiga da casa. Ela abriu um sorriso e disse que ali não tinha fotografias antigas, mas sua mãe teria com certeza. Diante daquele sorriso, logo vi que nosso diálogo poderia ser alongado sem problemas e com confiança, refiz a pergunta no intuito de saber se realmente não havia fotografias na sua casa. Maria Santa me devolveu outra pergunta: o que você chama de antiga? Pontuei que queria apenas ver a mais antiga da casa. Ela me convidou para entrar e me explicou que sua mãe agora estava um pouco “fraca das ideias”, não entendia muito das coisas e precisava de ajuda, mas na casa dela poderíamos ver uma parede cheia de fotografias antigas. Fiquei animada com a promessa, mas não queria passar pela casa de Maria Santa sem coletar imagens também. Para atender meu pedido, ela entrou e saiu em seguida, depois de pegar na sala de visitas, no primeiro cômodo da casa, a fotografia mais antiga. Era uma imagem de sua filha ainda pequena. Também me disse que não queria ser fotografada, pois se achava muito feia e que poderia fotografar sua filha.


Houve certo cuidado com a roupa com a que sua filha faria a fotografia: Maria Santa direcionou uma roupa que ela achava apropriada. Sua filha, de 15 anos, pareceu-me muito calma e meiga. Aceitou a roupa que a mãe indicou, posou para a foto e ficou aos sorrisos com a mãe ao ver a polaroide finalizando a imagem. Maria Santa ficou bem satisfeita com aquela lembrança inesperada.


Agora poderíamos seguir para a casa de Dona Preta e ver suas imagens. Maria Santa pediu para sua filha cuidar de sua mãe enquanto ia comigo mostrar as imagens. Andamos poucos minutos e lá estava eu retornando àquela casa humilde e escura. Maria Santa me falou que ali sua mãe não morava mais, pois agora estava sob seus cuidados. Quem morava ali era um irmão seu que, naquele momento, deveria estar no roçado. Ao entrar na casa, logo avistei uma parede repleta de fotografias. Nesta miríade de imagens, vi fotopinturas, fotocolagens, fotografias de alguns jovens, crianças, impressos com imagens de santos e algumas lembranças de cerimônias formais, talvez batizados ou aniversários. Aquela parede era uma espécie de relicário vertical, onde poderíamos encontrar toda a família em épocas diferentes, mas unidas no carinho de Dona Preta. Não pude escolher apenas uma imagem e fotografei a parede inteira. Ao retornar para a casa de Maria Santa, tentei iniciar um diálogo com sua mãe. Mantendo distância, sentei-me em uma pedra e lhe falei diretamente: Tudo bem Dona Preta? Ela não me respondeu. Depois de um tempinho, ela me perguntou se eu não tinha pente em casa. Eu abri um sorriso e disse que gostava do meu cabelo sem pentear. Ela riu e me perguntou de onde eu era. Falei que morava em Fortaleza, mas naqueles dias eu estava na minha casa, na comunidade do Riacho das Pedras, um vilarejo também no município de Redenção. Ela me olhou com firmeza e disse que conhecia aquele lugar. Comentei que eu era sobrinha-neta do Sr. Paulo e ela falou na sequência o sobrenome do meu tio-avô. Eu confirmei e disse que o nome da minha avó era Enedina. Ela deu um sorriso e disse que se lembrava dela demais. Depois se calou. Fiquei imaginando... Dona Preta tinha 95 anos, como me afirmou sua filha. Então ela foi contemporânea sim da minha avó, que faleceu com 96 anos, em 2014. Dona Preta estava ali na minha frente cheia de histórias na sua cabeça. Ficou assim com os olhos fixos em lembranças que para mim eram intransponíveis, guardadas apenas para ela. Ficamos em silêncio por algum momento e decidi me retirar. Maria Santa assinou a autorização de uso da imagem e conversamos ainda sobre o trabalho que é cuidar de uma senhora já tão idosa. Que algumas vezes ela se lembrava de acontecimentos e na maioria das vezes parecia uma criança. Agradeci sua paciência e atenção, e saí imaginando como seria aquele lugar 50 ou 70 anos atrás. Como as pessoas se conheciam mesmo morando distante e em que ocasiões, em quais situações se viam. Maria Santa se despediu com muita simpatia e voltou a seus afazeres domésticos.


Nessa visita, coletei duas peças para o Recordatório, na casa de Maria Santa e na casa de Dona Preta. Na casa de Dona Preta, fiquei impressionada com sua parede repleta de fotografias antigas. Um verdadeiro álbum/relicário vertical. Para compreender minha surpresa e encantamento com aquela “instalação da memória”, faz-se necessário refletir sobre o que significa um álbum e a própria casa, mas isso fica para depois do relato das coletas.