Recordatório

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2.8 O retrato da minha bisavó


Na segunda-feira, repeti o mesmo ritual do café da manhã: peguei o material e saí caminhando. Em meus planos, eu queria ir à casa de outro primo, do outro lado do açude, e visitar as casas que ficam no caminho do outro lado. Saí caminhando devagar, apreciando a vista sem pressa e parando para fotografar aquilo que me encantava naquele lugar. Logo ao sair de casa, avistei a casa de Mirlene e Elias. Pensei que seria interessante ir com o Recordatório na casa deles. Elias e Mirlene são primos, como a Dalva, mas eu não sabia ao certo o grau de parentesco até aquele dia. Sempre nos falamos e nos respeitamos como parentes.


Cheguei devagar, com atenção aos cachorros que pertencem à casa (uns quatro). Mirlene avistou-me de longe e me fez sinal para prosseguir sem me incomodar com os cachorros. Saudei Mirlene e falei do Recordatório. Ela sorriu e disse que tinha apenas uma foto em casa. Entramos e ela me mostrou a foto de formatura de segundo grau de sua única filha, Laíris. Era uma impressão com letras sinalizando sua conquista. Disse que aquela foto me servia muito bem. Mirlene disse que não tinha outra fotografia em casa. Observei que na sua estante havia uma miniatura da mesma foto da parede. Eu sorri e afirmei que ficava a cada dia mais difícil imprimir fotografias. Ela me falou que ela tinha outras fotos de quando ela era criança, mas estavam na casa de sua mãe. Mirlene é uma jovem mulher que se casou cedo, como muitas mulheres no Riacho. Propus fazer uma polaroide dela e do seu marido, que estava no quintal cuidando da casa. Elias afirmou de longe que não gostava de fotografias, mas Mirlene disse que ele iria tirar foto com ela sim. Como o dia estava bem bonito, eu propus um registro dos dois na frente da casa, eles concordaram e logo tomaram posição. A primeira fotografia saiu muito clara e decidi fazer outra. A segunda ficou mais equilibrada e eles ficaram com as duas. Agradeci a colaboração e segui no caminho. Enquanto caminhava, pensava em como seria possível todos serem primos ali. Eu tomava aquela questão como fato, mas nunca entendi muito todo aquele parentesco.


No caminho, passei pela antiga casa de meu tataravô, que hoje se encontra em ruínas. Houve um projeto que partiu da ajuda de várias pessoas, inclusive eu, para reconstruir uma parte da casa e não deixar cair tudo, mas a iniciativa foi interrompida por falta de condições financeiras.


O nome do meu tataravô está gravado no colégio municipal ao lado, Antônio de Barros. Entrei devagar na casa que continua em ruínas, com cuidado e com medo de cair algo na minha cabeça. Aos poucos, fui vendo as paredes que deixavam os tijolos aparentes. Grandes tijolos de barro deitados. Paredes grossas e que revelam o passar dos anos. Dali, da entrada da casa, fitei o horizonte. A casa foi construída no local mais apropriado para quem quisesse uma boa vista do vale inteiro. A varanda de barro batido desnivelada pelo desgaste já presenciou muitas festas, muitas histórias, muitos encontros e desencontros. Uma casa que é testemunha de uma vida simples e difícil.


Na primeira sala, observei uma entrada na parede no formato de uma capela. Um espaço que certamente era dedicado ao culto de algum santo. A casa foi construída já contendo entre as suas aberturas essenciais um espaço para a prática da fé.


Segui na minha caminhada lamentando não haver uma foto sequer daqueles parentes e não poder dar continuidade ao projeto de preservação do espaço. O meu caminhar foi vagaroso, em que fui observando aquela paisagem refletida nas águas do açude, as pedras encobertas de verde, o céu azul. Quando já me inclinava no sentido de contornar o açude, deparei-me com a agente de saúde que vinha na minha direção. Ela me saudou e perguntou da minha mãe. Eu vi naquela oportunidade o momento propício para saber mais sobre a comunidade do Riacho. Eu falei que minha mãe estava bem, graças a Deus, e falei nas minhas coletas de fotografias antigas. Ela disse que estava indo na casa de uma antiga moradora e que eu deveria encontrar fotografias antigas com ela. Decidi acompanhá-la e no caminho fui fazendo as perguntas sobre essa população de “primos e primas” do Riacho.


Conceição disse-me que no Riacho, moram cerca de 250 pessoas e que praticamente todas as famílias tinham algum contato com o Coronel Antônio de Barros: sejam filhos, netos do próprio ou descendentes de trabalhadores de sua propriedade.


Paramos na varanda de uma grande casa onde eu já havia estado em meu tempo de criança. Passávamos por ela no caminho do banho de açude. Conceição me apresentou a dona da casa, que conheceu minha avó e minha mãe. Comecei a perguntar os nomes dos filhos e netos, na intenção de entender o parentesco de todos aqui.


Conceição e Ana foram se ajudando na construção da nossa árvore. O que uma esquecia, a outra lembrava, e eu tratei de tomar nota. Não poderia perder esta oportunidade de saber os nomes das pessoas e o passado daquele lugar.


A conversa foi demorada e eu fiquei muito feliz de finalmente compreender como se dava todo o parentesco. Muitos filhos e cada um com muito filhos também. Uma outra realidade desta que vivemos hoje. De acordo com o ano de nascimento de minha avó, 1917, passei a entender que o Coronel Antônio de Barros deve ter se instalado na região por volta de 1885 ou 1890. Naquela época, comprava-se a patente de coronel e ele passou a se chamar assim. De acordo com Conceição, a estrada foi construída em 1958, num ano de seca e o governo resolveu abrir uma estrada onde antes era uma vereda com o trabalho das pessoas daqui.


Ana me compartilhou uma fotografia de sua avó na sua festa de 96 anos, também parente direta do Coronel Antônio de Barros. No momento de fazermos a polaroide, Ana colocou-se na frente da sua casa e Conceição só parou de sorrir na hora da foto.


Hoje não se tem fotografias destes parentes distantes. Dentre nossos antepassados mais antigos, eu consegui uma fotopintura da minha bisavó. Esta fotografia me foi enviada via rede social, depois de uma intensa demanda de minha parte. Há poucos registros desses parentes, pois o arquivo fotográfico não era uma prioridade dentro de uma realidade tão simples. Ter saúde, fé e força para trabalhar a terra todo santo dia era mais que suficiente.


Hoje, muitos primos foram morar em outros lugares, como a minha mãe, que saiu daqui e não gosta mais nem de visitar o campo. Ela prefere a cidade. Outros mais foram para longe, mas muitos continuam morando por aqui. Contando, por alto, o número de filhos e netos, temos por volta de 160 pessoas. Agora me foi explicado o motivo de todos se chamarem de primos. De fato, somos mesmo.


No desejo de visualizar essas pessoas e nomes, desenhei uma árvore genealógica da nossa família. Fui desde a geração do meu tataravô até chegar aos meus filhos. Fiz uma grande pintura, tomando uma parede inteira. Meus vizinhos, que também são primos, gostaram muito da pintura, registraram e estão compartilhando.


Ao ver essa imagem, meu peito se enche de satisfação. Posso não ter as fotografias destes parentes, mas me satisfaço ao me ver, em cada nome, pessoas que me povoaram a infância e me cercam até hoje.


A única imagem que temos da minha avó Santana estava na casa da minha tia-avó Maria Alice e no seu falecimento, foi levada para São Paulo, onde mora a sua filha Zenaide. Enviaram-me uma fotografia com baixa qualidade, mas é possível ver os traços familiares no rosto dela. É uma fotopintura e fala muito ao meu coração.


Os meus filhos e sobrinhos muito se alegraram ao ver esta árvore. Fiquei surpresa com a alegria deles. De fato, é algo importante se ver numa árvore e entender visualmente as suas origens, seus caminhos até aqui. Além disso, é interessante pensar até onde o Recordatório me trouxe: uma viagem autobiográfica em que meu desejo de autoconhecimento se tornou mais forte. Quem sabe o desejo de encontrar outras pessoas fale mais de mim mesma do que eu poderia imaginar, a princípio.